*Catedrais em Chamas. A Real e a Simbólica.*
_Por Raimundo Tostes, Professor_
No último dia 18 de abril o mundo assistiu estarrecido as chamas consumirem a Catedral de Notre Dame, em Paris. O desfecho que só não foi ainda mais trágico devido ao heroico trabalho dos bombeiros franceses. Nem bem as labaredas haviam sido contidas e alguns endinheirados já se adiantavam em alardear que fariam (fiquemos alerta com este futuro do pretérito) generosas doações para a restauração da igreja.
Compreensível que dentre as muitas manifestações de solidariedade à igreja e ao povo francês esteja esta, de ajuda material, financeira. Afinal, trata-se de uma Catedral icônica sob vários pontos de vista: é referencial do notável avanço técnico que perpassa oito séculos de apuro arquitetônico, é referencial histórico que inclui a coroação de reis e exéquias de soldados que tombaram lutando pela liberdade do continente europeu em duas grandes guerras e é referencial de cultura, seja como patrimônio cultural da humanidade conferido pela UNESCO ou pela sua imortalidade em obras como _Nossa Senhora de Paris_, de Victor Hugo e seu subsequente número de adaptações para o teatro e o cinema.
Não chama atenção a imediata resposta ao socorro de Notre Dame. Chama atenção que, em menos de 24 horas, tantos bilhões de dólares já estivessem sendo canalizados para este fim. Chama atenção o silêncio ante o incêndio simbólico que toma conta de uma catedral maior: a civilização.
Enquanto os escombros de Notre Dame ainda estão fumegantes, 800 milhões de pessoas vive em extrema pobreza, meio milhão de pessoas morrem de malária e outro tanto, ainda crianças, morrem de diarreia, mais de um milhão de pessoas estão se movimentando pelo mundo, fugidas da fome, da guerra ou de ambas, mais de um bilhão e meio de pessoas trabalham sob condições precárias com pouca ou nenhuma cobertura social.
Museus ou catedrais em chamas são tão antinaturais como estes incêndios simbólicos. Que ardem mediante pouco ou nenhum socorro. Cujas sirenes não alarmam ninguém e cujos gritos de desespero são ignorados.
E o quanto custa este socorro?
Hans Rosling, estatístico e grande divulgador da ciência, nos mostrou em seus vários documentários (disponíveis no site _https://www.gapminder.org_) que promover a melhoria da qualidade de vida de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza tem muito mais a ver com riqueza moral e política do que com riqueza econômica. Um dos exemplos é o de Olivia e André, agricultores pobres da zona rural de Moçambique. A vida desta família pode ter uma formidável melhora com a aquisição de algo tecnologicamente muito simples: uma bicicleta. O que lhe pouparia horas de caminhada para levar sua pequena produção agrícola para uma feira na cidade, além de lhes permitir quadruplicar a carga transportada e, assim, superar a renda diária, hoje inferior a U$S 2,00. Em outros bolsões de pobreza no mundo, seja na África Subsaariana, no Leste Asiático ou na América Latina e Caribe, o salto tecnológico implica em soluções igualmente simples: pode ser o fornecimento de energia elétrica, de água potável, esgoto subterrâneo. Ou quem sabe um aparato tecnologicamente superior, a mais poderosa ferramenta de transformação social: uma escola. Melhor ainda se municiada com aquilo que Malala Yousafzai, a jovem estudante afegã, Nobel da Paz, qualifica como a pedra de toque da mudança no mundo: uma criança, um professor, uma caneta e um livro. Já seria um socorro formidável!
Irônico que as chamas tenham tomado Notre Dame a poucos dias da páscoa cristã, que nos remete a um certo galileu que, indignado com o sofrimento do seu povo, vendo prosperar tanta pobreza e injustiça, afirmou perante o templo de Jerusalém, construído por mãos humanas, que o destruiria e em três dias edificaria outro, não erguido por mãos de homens. O templo era ele próprio. Assim,a páscoa cristã propõe um renascimento, uma renovação, é a celebração triunfal da vida sobre a morte.
Nada pode ser mais extraordinariamente simbólico. É possível acreditar que a humanidade consiga superar suas contradições e reerguer a catedral civilizatória. _All You Need Is Love_ cantam John, Paul, George e Ringo. O Amor que arde sem se ver, de Camões, o Amor de Paulo que não se esgota e caminha ao lado da esperança, o Amor de Dante que move os céus e as estrelas.
O Amor do jovem Galileu que nos inspira a erguer nosso templo interior.